Sobre a Empatia Incondicional

Sobre a Empatia Incondicional
Para Satish Kumar, a empatia é o princípio organizacional da vida

Satish Kumar

Nos último 10 anos, tenho visitado a ilha de Maiorca, a convite de meu amigo Guillem Ferrer. Certa vez, ele me pediu para falar sobre um ideal que guiasse as minhas atividades. Eu disse que a coisa mais importante na minha vida era a amizade. Todo meu trabalho vem da amizade.

A amizade é o meu principio primordial, o ganha-pão da minha vida. Vivo através da amizade. Para mim, a amizade é a qualidade espiritual suprema. A amizade é incondicional – não há desculpas. A amizade não tem motivo. Você não diz: eu sou seu amigo porque você é isso ou aquilo. Por que você é culto, rico, inteligente, bonito, ou “bom de papo”. Essas coisas não vêm a sua mente. Você tem um amigo por que você quer ser um amigo. Amizade diz respeito a aceitação, não a expectativa. Você presenteia e é presenteado. A amizade tem suas raízes na profunda gratidão.

Na amizade, diz-se apena “sim”. Quando um amigo pede alguma coisa é difícil dizer não. Se algum amigo me pede ajuda, eu digo “sim”. E se eu peço algo a um amigo, ele me diz “sim”.

Minha amizade não é direcionada apenas aos seres humanos. Eu também sinto amizade para com a Natureza. Sou um amigo do meu lar e do meu jardim. Amigo das árvores e das flores. Das abelhas. Amigo de cada minhoca, lesma e caracol. As ervas-daninhas são minhas amigas. Amizade é um termo que a maioria das pessoas usa apenas para as relações humanas, mas eu uso num sentido mais amplo.

Meus filho são meus amigos. Na Índia, dizemos que quando um filho completa 16 anos ele não é mais seu filho: é seu amigo. “Amigo” é melhor que “filho” ou “filha”, porque “filho” ou “filha” são termos que carregam expectativas. Espera-se algo dos filhos. Eles esperam algo dos pais. Como amigo, você não espera nada. Você os trata com respeito. Da mesma maneira acontece com minha esposa. Ela é minha amiga. Não temos uma relação de posse. O amor liberta. Não há nenhuma imposição, nem amarra numa união vista dessa forma.

O vilarejo em que eu vivo é meu amigo. Eu o aceito como ele é. Não incorro em julgamentos. Amo seu povo, seus vales e árvores. Amo a paisagem natural. Como vivo perto do oceano, tenho o oceano como meu amigo também. Dessa forma, todo o planeta é meu amigo e, por que não, todo o mundo. Toda transformação que eu tento fazer em minha vida, em minha sociedade e no mundo, faço-a com um sentimento de amizade. O mundo é belo, mas, dentro dele, criamos alguns sistemas que precisam ser reformulados. Minha casa é minha amiga, portanto eu a limpo, conserto, pinto, porque depois de um tempo ela precisa de reparos e de reformas. Meu jardim precisa de reformas. Da mesma forma, a política precisa de reforma. Sendo assim, eu trabalho para criar renovação na política e renovação na economia.

Quando meu corpo precisa se reparar e se curar, eu procuro repará-lo e curá-lo. O mundo é meu corpo e a sociedade é meu corpo. Nesse sentido, meu trabalho é o de um curador amigo. Meu trabalho na Small School1 é um trabalho de amizade para com as crianças. Meu trabalho na revista Resurgence & Ecologist é um ato de amizade com os leitores. Meu trabalho no Schumacher College é um ato de amizade para promover ecologia e espiritualidade no mundo. Com meditação, boa comida e relaxamento, eu curo meu corpo. Quando estou elétrico e cansado, digo ao meu corpo: vamos com calma, relaxe e durma um pouco. Da mesma forma digo à sociedade: durma um pouco, diminua o ritmo, não trabalhe tão duro e tão depressa. Buda disse: “Se você traça sua rota com pressa e sob pressão, você se perde no caminho.”

Na amizade, não há expectativas, nem apego, porque esses dois sentimentos levam à frustração. Eu vivo com leveza e pratico o desapego. Dessa forma, posso me manter em movimento: não estou preso, não há amarras. O desapego traz liberdade. Todo meu trabalho tem a sua raiz na profunda amizade pelas pessoas e pelo mundo. Eu e o mundo somos um. Quando estou trabalhando pela transformação do mundo, trabalho pelo transformação de mim mesmo. Quando expando a minha consciência, torno-me um ser maior, um “eu” universal. Nesse corpo, sou um microcosmo de um macrocosmo.

Então, é como amigo que digo ao senhor Obama: “Olhe para o senhor Putin e o veja como um amigo, para que os vossos conflitos se resolvam”. Eu digo ao senhor Putin: “Trate todos os ucranianos como seus amigos. Você é cristão. O que Jesus disse? “Amai-vos uns aos outros”. Eu digo ao senhor Netanyahu: “Vocês estão em guerra com os palestinos nos últimos 70 anos, o que conseguiram? Tentem, ao menos uma vez, a paz com a Palestina, para ver o que acontece. Através da amizade o sofrimento é atenuado”. Eu aconselho os palestinos: “Os judeus estão no exílio há 2000 anos. Agora, eles devem voltar para casa. Juntos vocês podem transformar a Palestina numa terra próspera”.

A melhor maneira para se ter amigos é sendo um amigo. A amizade é a resposta mais simples e direta para nossas agonias, ansiedades e angustias.

No campo da amizade, com minhas mãos humildes, enterro as sementes do amor. Espalho o adubo da ternura e irrigo o solo da minha alma, com a água da generosidade. Sou, enfim, abençoado com a fragrância do contentamento e os frutos da liberdade. Eu sou profundamente grato aos presentes que a vida me deu todos os dias. É agradável ser um amigo e uma benção ter amigos.

Com amizade e sinceridade em meu coração, caminhei mais de 12.000 quilômetros ao redor do mundo, sem um tostão no bolso. Caminhei por países comunistas, capitalistas, muçulmanos, cristãos e, por todo lugar que passei, obtive alimento, abrigo e amor. Se eu tivesse saído como um indiano, iria encontrar um paquistanês ou um russo. Se tivesse andado como um hindu, encontraria cristãos e muçulmanos. Mas eu viajei como um ser humano e encontrei seres humanos em toda parte. Minha caminhada foi um ato de amizade.

Se somos russos ou americanos, judeus ou muçulmanos, xiitas ou sunitas, comunistas ou capitalistas, não importa o rótulo, somos, antes de mais nada e acima de tudo, seres humanos. Nossa identidade humana se sobrepõe às demais. É por isso que precisamos construir nossas relações, tanto pessoais, políticas ou ecológicas, sobre os fundamentos da amizade.

Quando Buda estava dando o seu último suspiro, Ananda o perguntou: “Como o senhor gostaria de reencarnar na próxima vida?” Buda respondeu: “Não como um profeta, um mestre, nem mesmo uma pessoa, mas como maitreya. Quero ser reencarnado como amizade, empatia e candor.

A amizade é o único ingrediente capaz de unificar a humanidade. Através da filosofia da amizade, percebemos, de verdade, que estamos todos conectados, relacionados, que somos interdependentes. O planeta Terra inteiro é nossa casa e somos membros dessa singular comunidade terrestre e da singular família humana.

Você pode me chamar de idealista. Sim, eu sou um idealista. O que os realistas conseguiram? Guerras? Pobreza? Mudanças Climáticas? Os realista têm governado o mundo há séculos e falharam na conquista de paz e prosperidade a todos. Então, porque não dar a chance aos idealistas e permitir que a amizade seja o princípio organizacional do nosso mundo? Podemos não ser, totalmente, bem-sucedidos. Podemos não alcançar a utopia, mas que nos seja permitido maximizar o poder da amizade e minimizar a força dos conflitos. Vale a pena tentar.

Trad.: Josemar Vidal Jr.

NOTAS:

1 Pequena escola criada por Satish Kumar, em Hartland, Devon. Tem capacidade máxima para 40 alunos, dos 11 à 16 anos.

dormir...

dormir
    quebrar a barreira do sono
            cruzar a linha de partida

entre o descanso
e o ócio
insisto

Mahavira, o "Buda" do Jainismo

Mahavira, o "Buda" do Jainismo


Sree Chitrabhanuji

Ilustração da parábola dos "cegos e do elefante",
usada para explicar o conceito de Anekantavada.
Tanto a violência como a não-violência começam por etapas. Os passos iniciais são sutis e se desenvolvem, pouco a pouco, em grandes atos de conflito ou compaixão.

Quando Nelson Mandela foi libertado da prisão, algumas pessoas o incentivaram a acertar as contas com quem lhe havia tratado de forma tão errônea – mas ele se recusou a ser dominado pelo ódio. Argumentou que, por muito tempo, já havia sido um prisioneiro de seus oponentes, fisicamente falando, e que não queria passar o resto de sua vida sendo um prisioneiro emocional.

O velho Mandela entendeu que, para projetar a raiva adiante, é preciso antes queimar-se por dentro; para impingir violência a outrem é preciso antes agir com violência a si próprio. Ao queimar o detentor do fogo, as chamas do ódio podem consumir a sua própria fonte, antes do adversário. Nos dias de hoje, se buscamos conquistar nossas emoções mais básicas, precisamos aprender com os exemplos de pessoas como Nelson Mandela, Mahatma Gandhi e Martin Luther King, que forjaram escolhas a partir do calor das batalhas mais tempestuosas da vida.

A ideia de ahimsa (ou não-violência) é uma ideia emancipadora. Não é apenas um conceito. Ela começa como um simples sentimento e pode crescer até abranger todas as esferas de uma vida. A ideia se metamorfoseia em sentimento. É esse sentimento que transforma o nosso em redor. A vida de Verdhamana Mahavira foi um exemplo de tal auto-realização. Ele inspirou outros com a sua maneira de ser, transmitindo sabedoria sem doutrinação.

Dessa maneira o verdadeiro conhecimento se faz possível. Uma pessoa com raiva abre sua boca e fecha seus olhos. É a nossa mente que precisa de controle. As guerras, eles dizem, começam nas mentes dos homens. Então, é lá que a paz precisa ser conquistada. Nossos sábios compreenderam essa simples verdade séculos atrás. Mahavira, um dos Tirtankharas, praticou o verdadeiro ahimsa sem pregar ao mundo.

Mahavira entendeu as raízes da violência na psiquê humana. Seu alerta, por conseguinte, foi contra o absolutismo e o dogmatismo. Sua enfase no conceito de Anekantavada foi um clamor ao reconhecimento da multifacetada natureza da realidade. A percepção da realidade depende do tempo, lugar, natureza e estado do observador. A verdade absoluta não pode resultar do ponto de vista de apenas uma pessoa. Absolutismo, para ele, era um ato de violência mental. Relativize o absoluto, ele pedia. Buscava o respeito de diferentes sistemas de crenças.

Anekantavada é a visão na qual o paradoxo dos opositores é integrado. Se olhamos para as coisas com equilíbrio, vamos descobrir que os opostos são complementares uns aos outros. Sem opostos, não há crescimento e consciência. Quando estamos cientes do ciclo dos opostos não os vemos como opostos, mas como algo compatível com o crescimento. Isso nos permite um relacionamento aberto com o mundo.

Mahavira falou sobre o impulso insensato de acumulação e em como isso engendra um sistema de violência em nossas vidas. Ele não era utópico ou fora da realidade. Ele queria que crescêssemos além do limite da ganância para abrir a possibilidade de transcendência de nossa linearidade. É apenas a transcendência do ego, que gera grande empatia, que podemos considerar como um grande princípio.

A compaixão de Mahavira se estendeu, além da humanidade, para todas as formas de vida. Tal posição o fez um irmão distante dos ambientalistas contemporâneos e dos ativistas dos direitos dos animais. Mahavira fala conosco no presente. Não é através do terror ou de bombas aéreas que vamos fazer do mundo um lugar mais seguro. Podemos fazer um lugar mais seguro transformando as consciências. Para essa transformação precisamos considerar a gentil e curativa mensagem de Mahavira.