Violência, democracia
e religião [1]
Satish Kumar
Desde 11 de setembro, a
política mundial tem sido dominada pelo medo e insegurança. O
terrorismo internacional tornou-se o centro espectral de nosso tempo.
Mas os líderes políticos estão ocupados planejando ações que
lidam, sobretudo, com os sintomas do terrorismo, ao invés das
causas. Eles esperam que através do poder policial e militar, e
outras medidas de segurança, serão capazes de erradicar o problema,
ou, ao menos, contê-lo. Mas, se tomarmos a história como um guia,
embora as tentativas (superficiais) de combater e suprimir o
terrorismo deem uma aparência temporária de vitória, mais cedo ou
mais tarde o terrorismo irá levantar a cabeça, não importa a forma
em que se apresente.
Vejamos de que maneira
a humanidade tem lidado, através dos séculos, com a violência,
não-violência e o poder. Em como tais conceitos abarcam o fenômeno
do terrorismo.
Quando nós observamos
a história da política, encontramos três tipos de liderança. Na
primeira categoria aparecem os líderes militares, conquistadores e
ditadores, os quais acreditam que o poder surge por via das armas.
Eles escolhem a violência como um caminho para o poder, mantêm o
poder através da violência e, geralmente, morrem por meio da
violência. Guerreiros famosos, como Alexandre “O Grande”, Gengis
Khan, Saladino, Ricardo I (o “Coração de Leão”, líder das
cruzadas), Napoleão, Hitler, Stalin, Saddam Hussein e Osama bin
Laden figuram nessa categoria.
Os pertencentes a esse
grupo argumentam usar a violência e a guerra apenas para
sustentar valores como “islaminsmo”, “cristantade”,
“liberdade” ou “democracia”. Eles escolhem o caminho da
violência para atingir “bons” fins. Nessa visão, os fins
justificam os meios. Mas, na verdade, “Deus”, “liberdade” e
“democracia” tornam-se meras nuvens, por sob as quais eles
escondem seus verdadeiros objetivos: ter poder e controle. Quem
saberá dizer se a história não colocará líderes de guerra
atuais, como George Bush e Tony Blair [2], nessa categoria?
Este tipo de liderança
aposta suas últimas fichas no poder das armas e seu refúgio final é
a guerra. Para eles, o direito do mais forte impera, apesar disso vir
oculto atrás de grandes ideais.
A segunda categoria, no
extremo oposto, é daqueles que escolhem a não-violência, do
começo ao fim. Eles estão dispostos a arriscar suas vidas na busca
do bem comum, pelo bem-estar de todos. Ao invés de desejar o poder
sobre outros, eles querem compartilhar o poder, e empoderam a todos
que encontram. Para eles, o verdadeiro poder é o poder do amor e da
não-violência. Todos os outros poderes são ilusórios e enganosos.
Nessa categoria, encontram-se Buda, Jesus Cristo, Mahavira, Mahatma
Gandhi, Martin Luther King, Madre Tereza, Dalai Lama, Aung San Suu
Kyi, para citar alguns.
A influência desses
líderes é forte e duradoura. Corações e mentes de muitas gerações
são alimentados, nutridos, inspirados, encantados e vitalizados pelo
exemplo deles. Estes são os líderes que transmitem confiança a
todos, dos mais humildes aos mais ilustres.
Mas existe ainda a terceira
categoria de líderes, a dos que se perdem no meio das outras duas
categorias. Inicialmente, eles escolhem a força como uma maneira de
adquirir genuína liberdade e justiça. Mas, a meio caminho,
deparam-se com as consequências destrutivas e chocantes da
violência. Eles experienciam a revelação; percebem que violência
gera violência. Matar deteriora o assassino tanto quanto a vítima,
senão mais. Os que foram mortos estão mortos, mas aquele que mata
deve viver com a sua culpa, com as suas memórias e com as
consequências de seus atos. Entre os líderes que passaram por tal
transformação, incluem-se o imperador indiano Ashoka, São Paulo (a
caminho de Damasco), o profeta Mohammed, talvez Mao Tsé-Tung, Nelson
Mandela, e, possivelmente, Gerry Adams e Martin McGuinness.
O herói de Buda e o
terrorista, Angulimala, encontra-se nessa terceira categoria.
Angulimala nasceu na
mais baixa casta da Índia. Ele vivenciou a injustiça, a
discriminação e a miséria imposta pelas altas castas à sua
família e a seu povo. Dia após dia ele sofreu e testemunhou a
opressão sobre sua comunidade. Por fim, ele não pôde suportar mais
essa situação e empunhou uma espada dada a ele por um mágico,
almejando o poder através da violência. Mas seus objetivos eram
nobres. Ele queria estabelecer a justiça para seu povo oprimido.
A estória começa no
ponto em que Angulimala está aterrorizando cidades e vilarejos,
assassinando homens, mulheres e crianças, com o objetivo de libertar
a sua casta.
Em uma de suas
violentas missões, ele se escondeu numa floresta, no norte da Índia.
Enquanto o povo da região estava completamente aterrorizado e
confuso, incapaz de lidar com o terrorista, o renomado mestra da
compaixão da época, Buda, que era, da cabeça aos pés, destemido e
pacífico, foi de encontro a Angulimala e o confrontou. Isto foi um
choque, uma virada na vida do terrorista.
A estória gira em
torno das seguintes questões: O que acontece quando um homem
comprometido com a violência encara um homem comprometido com a
não-violência? Quem é o mais poderoso? Quem influenciará quem?
Os líderes políticos
atuais costumam dizer que não conversam com homens de violência;
que conversar com terroristas os encoraja. “Não vamos dialogar com
terroristas até que eles renunciem a violência e se desfaçam das
armas”, proclamam os políticos.
A visão de Buda é
exatamente oposta. Ele considera muito fácil dialogar com quem é
amigável e não oferece perigo. O real desafio é conversar com quem
é violento, com quem discorda, com quem se opõe e ameaça. A
violência externa é apenas um sintoma, a manifestação de algo
mais profundo. É através do diálogo, apenas, que os perpetradores
da violência e as vítimas dela podem descobrir suas causas mais
profundas - e encontrar meios para dissolver a discórdia. É preciso
ir além do óbvio e engajar-se em questões mais essências, de modo
a encontrar soluções verdadeiras e duradouras.
O terrorismo não é um
fenômeno recente. Quando povos oprimidos desafiaram a ordem
estabelecida e se movimentaram contra ela, as classes dominantes os
cunharam como “o mal”, e se esforçaram em suprimir a rebelião,
ignorando suas causas (mesmo se eles usassem métodos não-violentos,
como a desobediência civil). Jesus Cristo foi uma ameaça às
autoridades, portanto ele foi crucificado. Mahatma Gandhi, Martin
Luther King e Nelson Mandela foram presos. Steve Biko e Ken Saro-Wiwa
assassinados violentamente. Dalai Lama exilado. Há uma larga
sucessão de defensores da independência de seus respectivos países
que foram designados como terroristas, presos ou até mortos, seja na
Asia, África, Austrália ou Europa.
Se as autoridades
dominantes foram desafiadas por meios pacíficos ou violentos, pouco
importa, pois onde quer que o poder tenha sido questionado a resposta
veio com medidas violentas. Se a oposição estiver armada, ambas as
partes lutarão. O jogo de gato e rato se firma, indefinidamente. Às
vezes os dominantes são derrotados, como no caso das revoluções
Russa, Francesa e Chinesa. Outras, os rebeldes são reprimidos, como
nos movimentos democráticos da China e Burma. Mas nenhuma solução
duradoura foi encontrada.
Na perspectiva Budista,
toda violência organizada é “errada”, não importa que nome
tenha: revolução popular, luta armada, terrorismo, defesa nacional,
guerra santa, cruzada ou jihad. Violência é violência, não
importa o pretexto ou o argumento. Todos os perpetradores da
violência justificam suas ações de uma maneira ou de outra. Al
Quaeda tem clara a sua missão. Opõe-se às bases militares
americanas na Arábia Saudita - uma terra santa - bem como se opõe a
política internacional americana, que apoia a ocupação de Israel
na Palestina. Mas o governo americano tem razões e explicações
para suas políticas. Eles querem expandir a “liberdade e a
democracia”. Querem prover segurança.
Se a violência é
legalmente sancionada ou ilegalmente organizada é uma questão de
validade temporal. Os rebeldes de hoje podem ser os dirigentes de
amanhã. Em todo caso, aquele que detém o poder é quem faz as leis
e as interpreta. As leis mudam conforme o tempo e a circunstância.
Mas existe uma regra de ouro que não muda de acordo com o capricho
de um poderoso de qualquer tempo. A regra é: não faça para os
outros o que não quer que façam para você. Osama bin Laden não
deveria fazer para os Estados Unidos o que não queria que eles
fizessem à seu povo. Americanos não deveriam fazer aos iraquianos,
o que não queriam que estes fizessem para si. Os Estados Unidos não
permitiriam que a Arábia Saudita, ou qualquer outro país,
estabelecesse bases militares em seu território. Então por que o mesmo E.U. deveria manter bases militares em terras estrangeiras? O
exemplo de Buda e Angulimala mostra que, no final das contas, todas
as partes devem entrar em negociação para resolver disputas e
diferenças e precisam estar de acordo em não utilizar métodos
violentos, como homicídios, guera, tortura e humilhação, caso
queiram realmente viver em paz.
Saddam Hussein desafiou
as autoridades americanas e Osama bin Laden atacou as Torres Gêmeas,
em Nova York [3]. Em contrapartida, os Estados Unidos desafiaram as
autoridades de Saddam Hussein e Osama bin Laden, ao invadir o Iraque
e o Afeganistão. Agora sabe-se que a Coreia do Norte tem armas
nucleares. Se os Estados Unidos e a Inglaterra atacarem a Coreia do
Norte, por que não deveriam atacar também o Irã? Cuba? Burma?
Paquistão? Israel? Índia? Onde isso vai acabar? As pessoas se
perguntam: “Porque é tão naturalmente aceitável que alguns
países tenham armas nucleares e outros não?
Se a violência é
cometida em nome da democracia ou da religião, ainda assim é
violência. Ao longo da história, é possível observar como em nome
da religião e de Deus, massacres e atrocidades tem sido perpetrados.
Hindus perseguiram Budistas. Muçulmanos e Hindus mataram-se uns aos
outros. Judeus perseguiram Cristãos e esses, por sua vez,
perseguiram Judeus. Católicos e Protestantes brigaram entre si.
Xiitas e sunitas trucidaram-se.
Da mesma maneira,
milhões de pessoas foram mortas e terríveis guerras foram travadas,
seja em nome da democracia, ou por líderes de guerra
democraticamente eleitos. Hitler assumiu o poder através do voto
popular, mas esse processo democrático não o impediu de atacar
países vizinhos, nem impediu que ele matasse judeus em campos de
concentração. O presidente dos Estados Unidos que deu a ordem para
lançar as bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki foi um líder
democraticamente eleito. A democracia não foi nenhum impedimento
contra a matança de homens, mulheres e crianças inocentes dessas
duas cidades japonesas. Políticos eleitos democraticamente de vários
partidos na Índia lideraram cruel repressão de rebeldes na
Caxemira, levando morte e aflição para milhares de pessoas. A Índia
é tida como um dos países mais democráticos no mundo. Isto redime
suas ações na Caxemira?
Eu poderia seguir
listando mais atrocidades cometidas por políticos democraticamente
eleitos. O suficiente para dizer que nem Deus, nem democracia são,
em si, garantia de civilidade, sanidade e paz. Nem Deus, nem
democracia são a origem primeira da justiça, da paz e do respeito
mútuo. As religiões e as instituições democráticas precisam
abraçar a não-violência como um princípio primordial. Sem a
não-violência, religião e democracia são noções vazias e sem
sentido. Todo esforço em impor valores religiosos e democráticos,
ou qualquer outro valor, por meio das armas, tanques e bombas, acaba
em sofrimento humano.
Tanto faz se a guerra é
santa ou por democracia. Não interessa se o terrorismo é por
autodeterminação. O sofrimento gerado por atos violentos não é
menor, apenas pelo fato de ter sido feito em nome de Deus, da
democracia ou da libertação. Portanto, uma guerra contra o
terrorismo que usa e justifica métodos violentos é, também,
terrorismo, mas com outro nome. Em realidade, o problema não é o
terrorismo, é a nossa fé na violência.
A fé na violência tem
uma longa história. Em certas épocas, aqueles com pontos de vista
diferentes foram acusados de heresia e queimados em fogueiras. A
violência levou comunistas a matar capitalistas. Os comunistas
dissidentes, como Trotsky, Soljenítsin e Sakharov, foram mortos ou
exilados. Capitalistas mataram comunistas no Vietnã, no Chile, na
Espanha. Nos Estados Unidos, na época de McCarthy, houve uma caça
aos comunistas: escritores proeminentes que criticaram o governo
foram considerados “antiamericanos”. Olhando por esse lado, o
atual problema com o terrorismo não é diferente do comunismo,
nazismo, capitalismo ou qualquer outro “ismo”.
Russos e tchecos,
indianos e caxemires, tâmiles e cingaleses, no Sri Lanka, maoistas e
o governo nepalês e muitas tribos guerreiras na África, todos estão
lutando por boas causas: pela integridade de seus país, por
soberania, por independência, por autodeterminação, por
democracia, por Deus, por interesses nacionais, por segurança. No
entanto, eles estão conseguindo alguma coisa? Estão indo a algum
lugar? É impossível derrotar o mal com o mal? Todas as nações
advogam comedimento e diálogo para as outras, mas, quando se trata
de sua própria maneira de fazer política, tudo descamba em
violência. Quando estão no poder usam suas forças armadas. Não se
dão conta de que violência e boas causas não se misturam; são tão
diferentes quanto água e vinho. Se uma pessoa usa violência e outra
chama isso de “mal”, e usa de violência para deter a primeira, a
segunda pessoa torna-se também maldosa, porque está usando os
mesmos meios. Quem levanta a mão mais alto pode proclamar vitória,
mas tal vitória não é o mesmo que “o bem”.
Aqueles que usam a
violência, basicamente, escolhem o caminho do raciocínio estreito, o
caminho hegemônico: um Deus, um poder supremo, um sistema político.
A monocultura mental encoraja a perseguição das bruxas, dos negros,
gays, lésbicas, imigrantes, minorias, liberais, feministas,
comunistas e por aí vai.
E a humanidade ainda
não cansou da violência, ao que parece. Juntas, nações de todo o
mundo despendem cerca de um trilhão
[4] de dólares anualmente, na organização, treinamento, equipagem
e prática de métodos violentos. Esse crescimento em gastos
militares, todavia, não aumentou, nem um pouco, o senso de
seguridade no mundo. Pelo contrário, quanto mais gastos militares
são feitos, mais cresce o sentimento de insegurança e ansiedade. Se
uma pequena fração desse dinheiro e desses recursos fosse investida
na promoção da não-violência, em negociações, na resolução
coletiva de conflitos, notaríamos a redução do terrorismo e a
segurança crescente.
O país que mais gasta
em violência institucionalizada é os Estados Unidos – o líder
do, assim chamado, mundo civilizado – como se um maior gasto em
armamentos fosse um sinal de civilização avançada! Isto é
civilização? Certa vez, Mahatma Gandhi foi inquirido por um
jornalista europeu: “Senhor Gandhi, o que o senhor acha da
civilização europeia”. Ao que Gandhi respondeu: “Seria um boa
ideia!!”. Sociedades obcecadas com violência, com superioridade
militar, com o acúmulo de armas nucleares, não podem ser chamadas
de civilizadas. Estas sociedades são felizes armando-se até os
dentes, enquanto milhões de pessoas ao redor do mundo sofrem com a
fome, secas e doenças. Ainda assim, nações ocidentais arrogam-se
civilizadas, guardiãs da democracia, protetoras da liberdade. A
linguagem perdeu o seu sentido quando “democracia” passou a
significar domínio, quando “civilização” virou sinônimo de
massacre de inocentes.
Trad. Josemar Vidal Jr.
NOTAS (do tradutor):
[1] Texto publicado
como prólogo do livro The Buddha and the teorrorist, de
Satish Kumar, 2005. O título original é Talking to terrorists e
apesar do objetivo específico ser um prólogo, funciona
perfeitamente como uma artigo sobre a violência e as instituições
permissivas a ela.
[2] Sob o pretexto de
encontrar supostas armas de destruição em massa, Estados Unidos e
Inglaterra invadiram o Iraque, em março de 2003.
[3] Na verdade, essa
teoria, atualmente, tem sido refutada, devido as várias provas de
que as duas torres foram implodidas, entre outras coisas. Ou seja,
elas não cederam apenas com o impacto dos aviões. Sendo assim,
ficaria muito difícil atribuir o atendado a Bin Laden, ou apenas a
ele, pois tal ação exigiria uma organização e apoio muito forte
de dentro dos Estados Unidos.
[4] Dados atuas já
falam em torno de 1.7 trilhões de dólares.
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